quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Insônia

A rua deserta parecia fazer cada passo ecoar de forma inconveniente. Sair de pantufas não tinha sido uma boa ideia. Na verdade nada daquilo tinha sido uma boa ideia. Mas ali estava ele: às 3 e tanto da manhã, de pijamas e pantufas, embaixo de uma chuva fina seguindo um desconhecido. O vento da madrugada gelado e cortante fazia seu corpo estremecer por debaixo do pijama fino. A pessoa ou coisa, seja lá o que aquilo fosse, acabara de virar a rua a esquerda. Era uma rua estreita e sem saída. As luzes dos postes piscavam conforme passavam. Um rastro no chão de algo gosmento e rosado evidenciava por onde aquilo passava. Era quase como se a pele dele estivesse derretendo. Ele apressou o passo e com o coração acelerado entrou dentro do beco escuro. Um silêncio quase sepulcral pairava. Procurou com os olhos apertados tentando se acostumar com o escuro, mas o que quer tenha entrado no beco havia sumido. Um barulho baixo como se fosse algo borbulhando atrás dos sacos de lixo começou a se destacar nos seus ouvidos. Ele caminhou com cuidado até ali e esticou o pescoço pra ver. O vômito na garganta subiu imediatamente. Uma massa gosmenta e disforme; como o rastro deixado pela rua. Não parecia pele derretida. Era pele derretida. Pele e sangue. Um súbito desespero se apoderou dele. Ele se virou e preparou para correr. Mas quase foi pra trás e caiu em meio a gosma com o susto que levou. Parado ali no beco escuro a coisa o observava. Era uma aparência quase indescritível e extremamente repugnante. Havia pele em alguns lugares, em outros ela parecia estar se soltando,e onde não havia.. ele não conseguia descrever. A coisa olhou e sorriu. Os dentes brancos e ferinos. Havia um pouco de pele na boca evidenciando uma cicatriz no canto superior direito. Uma cicatriz familiar. Ele deu um passo pra trás e levou a mão aos lábios.

— Xavier, meu bem, acorda. Você perdeu a hora de novo.

Ele acordou assustado e imediatamente levou a mão na cicatriz dos lábios.

— Teve pesadelo de novo né? Você vai acabar tendo um treco acordando toda vez nesse apavoro.

— Tá tudo bem. Já to acostumado.

Ele olhou no relógio de pulso. Já eram 9:20, a reunião havia começado fazia 20 minutos. Checou o celular e estranhamente não havia nenhuma ligação perdida reclamando da sua ausência. Ele tentava encontrar forças pra levantar da cama. Mal acabara de acordar mas já se encontrava cansado.

Ele sempre acordava cansado, pois todas as noites eram iguais. Primeiro o mesmo barulho que incomodava sempre e fazia ele demorar a dormir. Era como se fosse um galho batendo no telhado. Tum tum tum. Um tamborilar coincidentemente rítmico. Depois de alguns minutos era como se alguém estivesse mexendo na lixeira em frente da casa e derrubasse algo de vidro no chão. Sua esposa nunca escutava, dizia que era o vento e coisa da cabeça dele que pensava demais sempre. Enquanto a cidade dormia ele deitava esperando o sono surgir, olhando para o teto e escutando a batida no telhado. Depois de algum tempo a canção noturna ganhava novos instrumentos: a respiração pesada da esposa, um gato andando pelo muro, um ou outro carro passando, o bebê do vizinho acordando, seus pés inquietos batendo no colchão, uma risada. Uma risada muito incômoda. Toda vez que ela acontecia sua espinha congelava. Ele nunca conseguia identificar de que direção vinha. Às vezes ele tinha a sensação de que ela vinha de dentro da sua cabeça. Quase sempre depois disso ele pegava no sono. E como habitual, ele acordava mais cansado que se tivesse dormido às 8 horas de sono recomendadas.

E agora tinha o sonho. Sempre o mesmo sonho.

— Pesadelo idiota. — falou levantando-se da cama.

Se trocou, tomou um café rápido e antes de entrar na reunião, foi conferir os emails. Um em especial lhe chamou a atenção.

“Ata da reunião semanal — 14 de Outubro de 2020”.

— Droga — ele xingou baixinho. — A reunião já acabou.

Ele abriu o email e se assustou. Estava entre os participantes da reunião. Havia inclusive tido voz ativa. Aquilo era loucura.

Ultimamente essas pequenas coisas vinham acontecendo com frequência. Ele ia fazer algo que a esposa tinha pedido e já havia sido feito. Por ele. Os episódios da série que ele estava assistindo já estavam com histórico de assistido. Compras chegavam em seu nome e ele não lembrava de ter comprado.

Talvez as noite de sono ruim estivessem fazendo ele perder a memória.

Ele não comentou o novo incidente esquisito com ninguém. Nem os outros. Era só falta de sono. Nada além disso. Essa pandemia estava deixando todo mundo meio doido.

O dia passou arrastado. Era sexta-feira e talvez ele conseguisse dormir. 

E a noite se repetiu como todas as outras.

No outro dia ele acordou mais cansado que o normal e decidiu investigar os barulhos noturnos. Era sábado, 7 horas da manhã e o lixeiro não passava hoje. Ele foi até a lixeira e procurou por qualquer coisa que evidenciasse o barulho. Nenhum sinal de garrafa ou coisa parecida. Nada dentro da lixeira; nenhum vestígio de cacos no chão. Voltou para dentro irritado, fez o café e sentou na varanda para fumar. Han Solo, o seu cachorro pequinês, pulou e deitou nos seus pés. Ele terminou o cigarro, esfregou as mãos e iniciou a subida no telhado pela churrasqueira. As noites mal dormidas, o cigarro diário e a falta de exercício deram a sensação de que ele estava escalando. Ele subiu já sem fôlego e saiu se equilibrando pelas telhas procurando por qualquer sinal que fosse motivo do maldito barulho. Fora uma ou outra telha fora do lugar não havia nada que indicasse o incômodo diário. Ele desceu frustrado e decidiu deixar aquela bobeira toda de lado; talvez sua esposa tivesse certa e fosse coisa da sua cabeça.

O dia correu normal. As horas passaram e já era noite. Ele e a esposa pediram uma pizza, compraram algumas cervejas e assistiram alguns filmes na Netflix até o sono vir.

E ele veio.

Ele cochilava no sofá enquanto sua esposa dormia pesado ao lado dele quando os barulhos diários se iniciaram. Assim que o ruído começou ele se levantou com cuidado para não acordar a mulher. Foi até o banheiro e lavou o rosto. Enquanto fitava seu olhar apático no espelho, a luz piscou. O reflexo brincou com ele. Primeiro era como se seu rosto tivesse sumido. A luz piscou novamente. Dessa vez seu reflexo sorria maliciosamente. Sem pensar e por impulso deu um soco no espelho. O sangue escorreu por entre os dedos. A luz já acesa mostrava um Xavier assustado e nervoso olhando entre os cacos. Ele saiu correndo para cozinha. Enrolou o pano de prato na mão sangrando e preparou uma xícara de café. Acendeu um cigarro ainda tremendo. O barulho continuava. Era quase hora dos cacos caindo aparecerem. Ele precisava resolver isso hoje.

Pegou a xícara e se dirigiu até a varanda.

Han Solo prontamente acordou assim que ele passou e o seguiu junto até a frente da casa. Assim que ele se levantou e saiu, o barulho parou. O único ruído lá fora era o vento e um ou outro carro passando ao longe de vez em quando.

Ele estava com medo. Um medo inexplicável. Como ele nunca havia sentido. Como se sua vida corresse perigo.

Ele se escondeu atrás do carro com o cachorro entre seus pés e esperou espiando em direção a lixeira. Sem que tivesse se dado conta havia um homem lá. Ele usava um capuz que encobria seu rosto. Han Solo começou a rosnar baixinho.

A temperatura parecia que havia baixado drasticamente, era possível sentir o ar saindo frio do seu nariz e boca. Ele começou a tremer e um arrepio percorreu sua espinha. Tentou se aproximar, num misto de curiosidade e pavor, tendo o pilar da varanda como cobertura. Precisava espiar mais de perto. O cachorro tentou impedir que ele avançasse puxando-o com a boca pelo barra da calça do pijama. Enquanto ele tentava se desvencilhar do amigo canino sem querer acabou tropeçando na cadeira, fazendo mais baralho do que deveria ser feito. O cachorro saiu correndo casa adentro com os rabos entre as pernas e de orelhas baixas. Imediatamente Xavier congelou e olhou para o homem na lixeira. Suas mãos tremiam quase derrubando a xícara. O capuz e a pouca luz impediam de ver o verdadeiro rosto que o encarava:

— Quem é você? — Sua voz saiu tremida e baixa, como se algo o tivesse tentando impedir de falar. Como se aquilo fosse algo que ele iria se arrepender de perguntar. Algo que não deveria ser perguntado.

O homem abaixou o capuz e sorriu. Ele deu um passo para trás assustado.

A xícara caiu, fazendo o familiar barulho de cacos caindo. Ele olhou em pânico para chão e mais uma vez para o outro eu parado ali a poucos metros em frente a lixeira.

Era como se estivesse se olhando no espelho novamente.

De maneira quase imperceptível com um sorriso malicioso no rosto o homem lhe sussurrou:

— Seu pesadelo, Xavier. Sou seu pesadelo.

Ele riu. Um riso nervoso.

A risada congelante e fria sem direção de todas as noites.

Nunca mais precisou dormir.

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