terça-feira, 28 de novembro de 2023

Bluesman

 


Robert esperava ansioso pelo intervalo. Olhando com atenção e admiração Son House tocar. Tentava copiar com os dedos no braço o movimento do músico para tentar repetir no violão assim que ele fizesse uma pausa do palco.

“Um dia eu serei igual a ele. Igual não. Melhor.” — Prometia a si mesmo com convicção.


Assim que Son House parou e pousou seu violão, Robert foi até lá e sentou-se escondido em um canto do palco tentando repetir os movimentos anteriores.


Um som desconexo e nada parecido soava do violão. Algumas pessoas começaram a olhar estranho. Outras começaram a reclamar. Mas Robert ignorava a todos igualmente.


Até que o dono do violão apareceu:


- Garoto, você de novo. Larga esse violão. Você não leva jeito pra coisa. Eu já te vi tocando harmônica. Você deveria escolher ela e abandonar o violão. Vai por mim, você é um desastre.


Robert sorriu, devolveu o violão e saiu do bar com um cigarro entre os lábios.


“Eu não tenho escolha. Eu vou ser o melhor músico do Mississipi e calar a boca de todos vocês”. 


Um filme passou pela sua cabeça:


O sol quente e o suor escorrendo pelas costas enquanto trabalhava na lavoura. O padrasto pegando no seu pé porque “qualquer brecha você já tá se metendo nessa perda de tempo de música”. As noites no bares depois de um dia de trabalho pesado. A pequena Virgínia e seu bebê. Os pais dela lhe culpando pela morte dos dois. Culpando ele e o blues.


O engraçado é que se a intenção deles era o afastar dessa vida, estava tendo o efeito justamente o contrário.


Ele caminhou sem rumo por alguns dias. Parando em bares e mais bares. Pegando caronas. Colocando a vida em risco a cada dia. Quando se deu conta estava de volta onde tudo começou. Ali diante dele a placa da velha e familiar Hazlehurst.


Era noite quando chegou ali. Seus ouvidos tiveram a atenção reclamada por uma melodia que Robert nunca havia escutado antes. Era como se o violão estivesse sendo tocado de uma maneira que ele nunca ouviu. 

Enebriado pela música ele seguiu o som. Ele vinha do interior do cemitério. Ele caminhou entre as lápides, pelo local sepulcralmente vazio e iluminado pela lua que brilhava cheia no céu.


Depois de alguns minutos ele chegou até a origem do som. Sentado em um túmulo, um homem de chapéu e terno tocava o violão da forma mais bela que Robert já havia visto. Ike Zimmerman olhou o garoto curioso o observando em pé no meio do cemitério vazio.


- Quer tocar, rapaz?


- Quero, mas eu não sei.


- Eu não perguntei se você sabe. Eu perguntei se você quer tocar.


- Quero senhor. Quero muito.


- Sente-se filho, vou te ensinar tudo que sei.


Robert se sentou na lápide ao lado de frente para o homem.

- Primeiro. O melhor lugar pra se aprender blues é no cemitério. Os haints vão te ensinar. Segundo. Não importa se você toca mal aqui. Ninguém vai reclamar. Terceiro. Toque com o coração e esqueça do resto Robert.

- Como você sabe meu nome? — o rapaz perguntou assustado.


- Os haints me contaram — Ike sorriu e deu uma piscadela.


Eles passaram todos os dias, por um ano inteiro, com o mesmo ritual. Ao adormecer do sol se dirigiam com cigarros, whisky e o violão até o cemitério. Sentavam-se em lápides um de frente para o outro e tocavam até amanhecer.


Certa noite Ike admirava Robert tocar com os olhos marejados.


- Você está pronto, garoto. Vai ganhar o mundo como sempre desejou. Não se esqueça de agradecer.


Robert abraçou o mentor com carinho naquela noite e foi embora de Hazlehurst antes do amanhecer.


Antes de partir, Robert foi até a encruzilhada e ofereceu seu violão aos haints.


- Ofereço meu suor e sangue em agradecimento pelos ensinamentos.


Um vento frio e forte percorreu todo o local, jogando terra nos olhos de Robert. Quando conseguiu abrir os olhos, percebeu que o violão que estava em suas mãos tinha agora 7 cordas.


Ele sorriu e seguiu caminho.


Caminhou por todo Mississipi passando de bar em bar novamente. Um novo Robert. Ganhando admiradores respeitados, como Son House e Willie Brown, que antes o desprezavam.


E a cada apresentação os boatos começaram a correr mais e mais. Era impossível aquele músico outrora medíocre ter se tornado um violinista tão genial e talentoso, em um violão de 7 cordas ainda por cima. Com certeza ele havia feito um pacto com o diabo.


Robert sorria e se deleitava com cada boato. Se inspirando com os comentários.


Ele sentia-se rei do mundo enquanto tocava. Apesar disso, a dor de toda decepção e partida continuava ali. Além do blues, o whisky e cigarros diários ajudavam Robert a continuar seu plano de vingança contra aqueles que duvidaram dele um dia.


Certa noite depois de algumas horas de bebedeira no bar Three Forks, Robert pediu uma garrafa de whisky antes de iniciar a apresentação, para lhe acompanhar durante o show. A garrafa foi colocada ao seu lado alguns minutos depois que o pedido foi feito. Robert estendeu a mão para a pegar e imediatamente seu amigo Sonny Boy a tirou de suas mãos:


- Cara, nunca tome a bebida de uma garrafa que chega aberta. Você não sabe o que colocaram nela


Robert olhou maroto para o amigo tomando a garrafa de volta:


- E você nunca mais tire uma garrafa de whisky da minha mão, Sonny Boy.


E bebeu um grande gole.


Naquele dia ele não foi capaz de tocar. Seu corpo todo queimava por dentro. Ele saiu cambaleando para fora do bar caindo de joelhos ao chão, uivando de dor. Foi levado até seu quarto, vomitando e suando frio. Passou ali três dias agonizando e delirando.


Ao fundo escutou a voz de um dos amigos que o observava no quarto:


- Sempre fazendo escolhas erradas, Robert Johnson.


Em meio a dor e delírio, um filme passou pela sua cabeça: A fazenda. A pobreza. A mãe. Os padrastos. O medo constante pela sua cor. O trabalho pesado na lavoura. Virginia e o bebê. As noites no cemitério com Ike. Os boatos da alma vendida ao diabo.

Sorriu e pensou antes do derradeiro suspiro:


“Escolhas. Falam como se eu as tivesse tido. Pelo menos escolhi a forma de morrer. Bebendo um bom e velho whisky.”


Olhou ao redor e sombras vinham de todas as direções até ele. 


Sorriu mais uma vez e cantarolou baixinho uma última vez:

“Me and the Devil

Was walkin’ side by side

Me and the Devil, ooh

Was walkin’ side by side”


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