quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Feridas

Era início de Agosto, e como todo Agosto ventava muito. Todos os dias desde o primeiro do mês; aquele vento esquisito e mórbido.

Apesar do vento, o sol escaldante brilhava alto no céu e fazia o suor escorrer pelo rosto e costas de João. A fumaça do cigarro se misturava ao mormaço que subia do chão de terra batida. O cachorro dormia pesado tentando fugir do calor embaixo do abacateiro.

João alternava entre observar o cachorro dormir e enrolar outra palha com fumo. Tentava se concentrar em qualquer coisa além do comichão no tornozelo. Nele, uma ferida purulenta atraia os mosquitos; para regogizo do cachorro que fora esquecido para dormir em paz. Por baixo das unhas sujas e compridas do homem juntava-se sangue e pus da ferida. Ele coçava a têmpora suada, tentando entender o que acontecera. 

Há três dias os barulhos e os sonhos começaram. Nesse dia, ele acordara tarde da noite, a lua já alta no céu, com o cachorro latindo descontroladamente e arranhando a porta em desespero querendo entrar. Do quintal podia se ouvir o barulho do vento, muito mais forte que o habitual, e algo se arrastando pelo chão. Ele abriu a porta, deixando o cachorro entrar e de espingarda em mãos caminhou até o quintal procurando pela origem do barulho. Um redemoinho de poeira atingiu os seus olhos e algo que ele não conseguiu distinguir em meio a poeira voando lhe atingiu em cheio o peito. Assim que ele caiu de costas no chão o barulho e vento cessaram. A única companhia era o céu estrelado. Ele levantou-se desnorteado, com a perna sangrando e procurou pelo quer que fosse que o tinha atingido. O único vestígio de que algo passara por ali era um grande círculo “marcado” no meio do quintal. Era como se alguém o tivesse desenhado na terra com uma vassoura de palha.

Naquela noite o cachorro não quis dormir lá fora e naquela mesma noite ele sonhou com sua avó. Dona Jacinta. Ela se fora ano passado e ele nunca havia sonhado com ela desde então. Acordou com os olhos marejados e com a saudade da velha. Tinha sido um ano dificil desde que ela se fora. A vida toda fora somente os dois e o Pitoco. Ele sentia sua falta o tempo todo. Não se lembrava do que sonhou, mas sentia que era algo importante que deveria se lembrar.

A ferida que apareceu quando ele caiu inflamara muito e tinha uma aparência pestilenta. Ele começara a ficar febril. Passou mal o dia todo, e por isso foi mais cedo para cama.

Era madrugada alta quando os barulhos começaram novamente. Ventania forte e algo se arrastando. João não teve coragem de sair lá fora dessa vez. Espiou pela fresta da porta. A fresta era pequena e ele não conseguia ver com exatidão. Mas o que via, iluminado pela luz da lua, parecia um redemoinho de poeira, como ele nunca tinha visto. Dançava de forma estranha e ritmada no meio do quintal. Não parecia obra do acaso e da natureza. Parecia consciente.

O cachorro acordou com o barulho e começou a latir desesperadamente novamente. João se virou para reprimi-lo e assim que tirou os olhos do quintal o silêncio reinou e o quer que fosse que estava ali havia ido embora. No seu ombro uma nova ferida doia e vertia pus.

Ele deitou-se extramente cansado na cama. Era como se tivesse trabalhado embaixo do sol escaldante o dia inteiro sem pausas. Naquela noite ele sonhou de novo; mas dessa vez se lembrou:

“Era final do dia, e diferente de todos os dias em que acendiam a fogueira e ficavam conversando em volta dela, Dona Jacinta o chamou pra entrar.

-Meu menino é Agosto. O Senhor das Palhas tá andando por esse mundo. Nada de fogueira esse mês. As noites são deles fio. E silêncio, ele gosta de silêncio meu fio. Vamos, amanhã a gente vai agradecer a passagem dele.

A porta se fechou e alguns minutos depois a ventania começou.”


João acordou assustado. Era mais uma lembrança do que um sonho. Vovó fazia isso todo Agosto. Ele lembrava que no dia seguinte antes do anoitecer ela deixou um copo com água, uma vela branca acesa e um punhado de pipoca numa cesta de sisal no meio do quintal. Ele se lembrava que no dia seguinte não havia mais nada lá e que ele procurou pelo terreno todo e não achou sinal do que quer que fosse. Só o rastro circular em meio a terra.

Naquele dia ele não foi trabalhar. As feridas doiam muito. A febre aumentara, ele vomitava e suava sem parar. Ficou o dia todo deitado na cama. Em meio ao vai e vai de consciência uma ideia surgiu em sua mente. Ele tinha um plano.

Ao anoitecer resolveu colocá-lo em prática. Trancou o cachorro na casa e sentou-se de espingarda na mão e olhos atentos no meio do quintal. O que quer que fosse, ele terminaria com aquilo hoje. As infecções nas feridas haviam piorado muito e um cheiro fétido exalava ao seu redor. Ele tremia e suava sem parar.

Acabou cochilando apoiado na espingarda e quando acordou sentia o seu corpo açoitado pelo vento forte. Abriu os olhos e mal teve tempo de empunhar a espingarda. Uma luz cegante lhe atingiu os olhos. Ele gritou de dor e medo. Era como se tivesse olhando diretamente para o sol.

Desmaiou.

Acordou já era dia com o sol alto no céu e o cachorro lambendo seu rosto. Olhou para casa para ver se a porta estava aberta e mais uma vez um grito ecoou de sua garganta. Ele não via nada. Tudo era um vulto. Seus olhos queimavam. Ele estava cego.

Ele levantou-se tateando o chão e procurando a entrada da casa. Entrou pela porta arrastando se no chão. Ele não tinha forças. Ele estava com medo. Tudo doia. Lembrou-se da vó mais uma vez:

-“Silêncio meu fio. O Rei das Palhas está na terra”.

Ele desmaiou diversas vezes naquele dia; mas ao anoitecer sabia o que fazer. Cambaleando foi até o meio do quintal com o copo de água, a vela branca e as pipocas. Colocou tudo ali como vovó sempre fazia e foi para dentro da casa.

Alguns minutos depois a ventania começou. Mais forte do que nunca. Um arrepio percorreu todo o seu corpo. Ele podia senti-lo ali. Ele não se lembra muito bem do que aconteceu, mas amanheceu caido no chao.

As feridas haviam sumido sem nem deixar cicatriz; ele voltara a enxergar e o cachorro dormia tranquilamente ao seu lado. Correu direto para o quintal. Assim como se lembrava, as coisas haviam sumido.

Aquele dia estava mais disposto do que nunca. Foi trabalhar normalmente.

No final do dia ao entardecer se recolheu chamando o cachorro. Aquela noite foi normal. Como uma noite de Agosto costuma ser. O silêncio reinou. Só o vento esquisito e mórbido novamente.

Ele sorriu enquanto ouvia o vento lá fora:

-Obrigada Vovó. Obrigada Senhor das Palhas.

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